
PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REVISTA DA CAASP
“O temor reverencial à autoridade é o pior cacoete que o ensino jurídico e o ambiente forense podem transmitir”. Na frase acima, Conrado Hübner Mendes parece dar a senha da sua própria personalidade: temor reverencial é um sentimento que ele, definitivamente, não tem. A forma ácida e direta com que contesta o comportamento de ministros do Supremo Tribunal Federal é de uma irreverência ímpar. Eis o que diz, por exemplo, de Gilmar Mendes: “Tem tentáculos espalhados no Congresso, em partidos e no Executivo. É um juiz que tem uma faculdade de Direito que se beneficia do fato de que seu dono é ministro do STF. Beneficia-se porque essa faculdade presta serviços caros para o Poder Público, para governos que a contratam. Obtém patrocínios de grandes corporações, e essas corporações obviamente têm interesses no Supremo”.
Professor-doutor do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP, Conrado Hübner Mendes também detém os títulos de mestre e doutor em Ciência Política pela mesma universidade e de doutor em Direito pela Universidade de Edimburgo, Escócia. A contundência do que escreve pode ser conferida semanalmente na última página da revista “Época”, onde cravou o termo “populisprudência” para descrever condutas de juízes que visam a corroborar a opinião pública.
Numa das vezes em que publicou na “Folha de S. Paulo” (no intelectualizado caderno dominical “Ilustríssima”), apontou tantas incongruências no comportamento dos ministros do STF que provocou caudalosa resposta do ministro Luís Roberto Barroso, a qual, vale o registro, primou pela abundância de platitudes. O mesmo Barroso havia, antes, classificado o Supremo de “vanguarda iluminista” da sociedade brasileira. Assim o professor da USP avalia tamanha ousadia verbal: “Não há nada menos iluminista do que atribuir a um conjunto de juízes, provenientes de um grupo social muito particular e muito privilegiado, a vocação de vanguarda”.
Leia trechos da entrevista concedida por Conrado Hübner Mendes.
Revista da CAASP – Você cunhou o termo “populisprudência”. Poderia explicá-lo?
Conrado Hübner Mendes – Em poucas palavras, “populisprudência” é o populismo disfarçado de jurisprudência. O populismo envolve uma série de técnicas retóricas para despertar a paixão, os afetos, a adesão incondicional dos súditos. Serve para buscar apoio de um certo grupo de pessoas que o populista chama de “povo”, excluindo todos que não estejam com ele como “anti-povo” ou “impuros”. O populismo não costuma ser, e não pode ser o papel do juiz. A “populisprudência” é faceta do comportamento individual de certos juízes, mas às vezes também do sistema de justiça em geral, tentando arregimentar apoio popular para uma dada causa, para uma dada decisão, para um dado interesse que o sistema de justiça abraçou para si mesmo.
Em nome da “luta contra a corrupção”, por exemplo, estamos barateando certos direitos. Quem critica passa a ser visto como parceiro da corrupção. Essas garantias não serviam, como se diz, para beneficiar uma “elite endinheirada”. Tal elite se beneficia de outras patologias do sistema de justiça, não do alegado “excesso de direitos”.
Essa busca de apoio popular por parte de juízes não vai contra princípios básicos do Direito?
Isso vai contra, sobretudo, à ideia de que democracia supõe proteção de direitos, e proteção de direitos, com alguma frequência, é uma causa impopular. O Direito é uma espécie de anteparo ao impulso das maiorias. Direitos fundamentais, às vezes, são obstáculos a interesses coletivos. Podem ser obstáculos, por exemplo, a uma política de segurança pública, a uma política criminal.
É uma aposta que fazemos em nome da proteção da liberdade e da autonomia, contra esses impulsos da maioria. Portanto, é muito arriscado que o Judiciário se renda a esse canto da sereia.
Imagino o Supremo Tribunal Federal como exemplo acabado disso. Mas a “populisprudência” também não é vista em outras instâncias?
Sem dúvida. Isso acontece da primeira à última instância. Isso acontece no TJ, que é uma instância tão relevante, no campo do acobertamento da violência policial, por exemplo. Acontece no sistema de justiça como um todo, e aí você pode incluir o Ministério Público. Isso é feito até de maneira pouco disfarçada.
A doutrina incorporada pela Força Tarefa da Lava Jato, para pegar o exemplo mais eloquente, é uma doutrina que preconiza a busca de apoio da opinião pública, numa parceria excêntrica com o próprio juiz Sérgio Moro, que já escreveu sobre como é importante, em ações contra a corrupção, você ter o apoio da opinião pública.
“Populisprudência” é isso: pegar emprestado o “manto imparcial” do direito e engajar-se disfarçadamente numa campanha, corrompendo a função judicial. É claro que você, como juiz, não deve desprezar a opinião pública, mas isso não deve ser fator relevante para o resultado da sua decisão. Você tem a responsabilidade, como juiz, de responder a certos sensos comuns da opinião pública – é assim que se constrói autoridade. Diferente é baixar a cabeça e atender a anseios da opinião pública. O juiz tem a responsabilidade de responder à opinião pública, de argumentar com a opinião pública e de resistir a ela quando for o caso.
(…)
O ministro Luis Roberto Barroso, quando votou o habeas corpus do ex-presidente Lula, ficou meia hora queixando-se dos vários recursos, como que responsabilizando a defesa por usá-los. Será que ele se lembra do tempo em que era advogado?
A defesa de advogados usa de todos os recursos possíveis, naturalmente.
O processo tenta se proteger da má fé advocatícia a partir de uma ideia de litigância de má fé. Trata-se de uma figura, um conceito, um instituto que não é simples de se aplicar, porque se o sistema processual permite brechas para maximizar recursos, o advogado vai usá-las. Temos uma tarefa que é, de um lado, aperfeiçoar o sistema processual brasileiro, e eu tenho dúvidas de que o CPC tenha dado conta do recado.
De outro lado, tem que haver um Judiciário que consiga aparar essas arestas, por meio de uma jurisprudência processual adequada, que não permita esse tipo de abuso e de chicana advocatícia. Precisa construir padrões decisórios e respeitá-los.
Os argumentos do Barroso no seu voto sobre execução de pena em segunda instância merecem ser levados a sério, mas muitos deles não se aplicam no âmbito de uma decisão judicial, e sim na discussão de uma emenda constitucional. O arrojo hermenêutico encontra limites no texto, e no caso da presunção de inocência, o texto não admite gradações. Acho ruim a concepção de trânsito em julgado adotada da Constituição, mas pior fica se o STF puder mudá-la por sua conta.
(…)
Sem pretender centrar-me no ministro Barroso, ele afirmou que o Supremo é nossa vanguarda iluminista. Concorda?
Acho essa uma expressão hiperbólica, que joga mais fumaça do que esclarece qual é o papel de um tribunal constitucional. Tentando ler com o máximo de cuidado e boa vontade a expressão “vanguarda iluminista”, o que ele quer dizer não é muito diferente do que outras teorias expansivas de tribunais constitucionais querem dizer, ou seja, que um tribunal às vezes pode enfrentar a os outros poderes ou a opinião pública de modo construtivo. Esse tribunal pode, por exemplo, à luz de um bom argumento constitucional, construir concepção inovadora sobre dado direito fundamental.
Quando o Barroso usa o ruidoso nome de “vanguarda iluminista”, ele está, primeiro, superestimando o tribunal ao chamá-lo de vanguarda; segundo, está subestimando a bagagem de atrocidades que o Iluminismo fez historicamente em nome de uma razão superior. E não há nada menos iluminista do que atribuir a um conjunto de juízes, provenientes de um grupo social muito particular e muito privilegiado, a vocação de vanguarda. Vanguardas históricas não se proclamam vanguardas, e surgem no seio da sociedade, não na corporação judicial. Elas vêm e vão. Não se cria vanguarda por design constitucional.
Não acho, portanto, que seja uma expressão que o ajude. Ele poderia dizer a mesma coisa, de modo mais convincente, sem recorrer a essa expressão megalômana. O Barroso exemplifica a vanguarda iluminista por meio de alguns casos históricos da Suprema Corte Americana, como Brown v. Board of Education, que ajudou a abolir a segregação racial nas escolas. Mas a leitura de que a corte estaria, solitária e heroicamente, lutando contra ferozes adversários do progresso, é uma simplificação da história. Uma corte, quando muito, consegue catalisar e desobstaculizar mudanças. É melhor que seja assim, e não é pouco. Quando o ministro Barroso diz que a corte é que está empurrando, ele está distorcendo a história.
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Advogar em certos tribunais tem exigido que se leve mais em conta o perfil de juízes do que o próprio Direito. Isso não é nocivo à justiça?
Isso é ruim e corrosivo, claro.
Como os juízes não são máquinas, um advogado competente precisa pensar em todos os recursos que pode ter para atingir o resultado que deseja. Conhecer a personalidade e a biografia daquele juiz é um dos recursos que o advogado tem para tentar vencer a sua causa. Agora, que um tribunal consiga ser tão manipulável a partir desse ângulo, é sintoma de uma patologia desse tribunal.
Um tribunal não pode ser vulnerável e refém das idiossincrasias de um juiz individual. Como mitigar esse risco? O melhor que o tribunal pode fazer é construir um colegiado genuíno, uma instância decisória supra-individual, que gere constrangimentos do juiz individualista e estratégico. Isso significa que biografia individual de um ministro é inútil? Claro que não, mas significa que esse ministro não pode fazer qualquer coisa.
Hoje, ter uma causa no STF que caia com ministro X ou Y é saber muita coisa de antemão. Em certos assuntos, é antecipar o resultado definitivo. Você sabe que certos ministros mais ousados com seu poder cautelar monocrático podem resolver teu caso numa decisão. Há um fator tempo sob o total controle do ministro individual. Ele pode dar uma decisão e satisfazer tudo que você quer como advogado, ou ele pode segurar uma decisão por anos e isso já ser suficiente para a tua causa. Sob pretexto de decisão liminar, ele gera efeitos definitivos num caso. A urgência daquela decisão torna a decisão monocrática definitiva.
Gilmar Mendes é o exemplo mais eloquente, mas está longe de ser o único. O fato de o pedido de anulação da nomeação do Lula como ministro ter caído com o Gilmar Mendes resolveu a questão. É óbvio que o caso jamais veio a ser julgado pelo plenário. O tribunal se resumiu a um ministro, e esse ato de um único ministro foi determinante para todos os desdobramentos políticos posteriores, a começar pelo impeachment. Concordemos ou não com o mérito daquela decisão, aceitar que um ministro possa fazer isso é assustador para a democracia.
A não-decisão muitas vezes também tem efeito de decisão definitiva, não?
Com a decisão monocrática ou com a decisão de não decidir, o tribunal passa a se resumir a um ministro. A justificativa para que um ministro tome decisões monocráticas é, muitas vezes, uma justifica falsa, segundo a qual o plenário não teria tempo para se reunir para lidar com tantos casos. O plenário tem discricionariedade para remanejar a sua pauta quando a urgência do caso pede. A justificativa de que decisões monocráticas são formas de viabilizar o expediente do STF não se sustenta.
Uma causa tão explosiva quanto a da nomeação do Lula como ministro, assim como a da nomeação do Moreira Franco (caso idêntico, porém com decisão oposta dada pelo mesmo ministro Gilmar Mendes), ter sido decidida por um ministro sozinho e o plenário nunca mais ter decidido sobre o tema – e os fatos estão consumados e irreversíveis – é sinal de um tribunal irresponsável institucionalmente.
(…)
Você escreveu que “o sucesso da defesa nas cortes superiores depende tanto das idiossincrasias dos ministros quanto de negociações palacianas e corporativas”. Você estava pensando no ministro Gilmar Mendes?
É um exemplo, mas é claro que não é só ele…
Talvez ele seja o menos discreto?
Eu acho que não apenas é o menos discreto. Ele viola a integridade do tribunal pela teia de relações que faz questão de construir e manter, por ser um canal de comunicação permanente e aberto aos políticos mais importantes da República. O senador Aécio Neves tem o celular dele, tem acesso direto a ele. Ele teve encontros de domingo com o presidente Temer ao mesmo tempo em que estava sobre sua mesa a ação de cassação da chama Dilma-Temer.
Não é só um problema de discrição. Gilmar Mendes já cruzou uma linha vermelha e faz pouco caso dessa linha vermelha. Eu não conheço outro ministro que chegue perto dele nessas práticas. Nem mesmo Luiz Fux, que impõe a própria filha para desembargadora do TJ-RJ, ou que manobra de todos os lados para sustentar o auxílio moradia (com decisão monocrática que levou anos para ser submetida a plenário, depois retira da pauta com a exótica justificativa de que a AGU criaria um procedimento conciliatório etc).
Por que nenhuma voz poderosa se levanta contra essas condutas?
Dá para especular muitas razões. Talvez por um “acordo de cavalheiros”, expressão utilizada para se referir às convenções costumeiras do tribunal. Acordo de cavalheiros significa uma espécie de tolerância mútua de cada um dos ministros do STF a práticas às vezes abusivas: abusiva em pedido de vista, abusiva por não devolver o processo em tempo razoável, prática abusiva do presidente em pautar o caso que quiser quando quiser (ou tirar da pauta). Como todos praticam, é importante que todos se tolerem. Todos serão presidente um dia. Damos ênfase ao Gilmar Mendes porque os ruídos e conflitos causados por ele são mais frequentes e sonoros. Mas se o problema do Supremo fosse apenas Gilmar Mendes, estaríamos melhor. O maior problema é que o STF permanece refém dessas práticas. O plenário foi sequestrado e adquiriu síndrome de Estocolmo.
Gilmar Mendes tem tentáculos espalhados no Congresso, em partidos e no Executivo. Ele não é apenas um juiz menos discreto que reproduz comportamentos comuns. É de outro tipo. Há uma diferença qualitativa, não só de grau. Ele é um juiz empresário, além de tudo. Ele é um juiz que tem uma empresa particular, uma faculdade de Direito. Essa faculdade se beneficia do fato de que seu dono é ministro do STF, e vice-versa. Ele se beneficia porque essa faculdade presta serviços caros para o Poder Público, para governos que a contratam. Ele obtém patrocínios de grandes corporações, e essas corporações obviamente têm interesses no Supremo – eu não estou dizendo que isso perverte as decisões dele, mas é óbvio que perverte a imagem de imparcialidade do tribunal. Ainda que eu presuma a honestidade de uma decisão dele, a decisão dele já está comprometida porque já vem com a mancha da parcialidade.
Gilmar Mendes já o processou?
Claro que não (risos). Outros já me perguntaram, mas nunca me pareceu plausível essa hipótese. Não sei que argumento legal ele poderia usar para me processar. Fiz a ele algumas críticas francas e embasadas, que repeti aqui. Foram críticas aos hábitos de uma pessoa pública nociva, que exerce abusivamente, a meu ver, um dos cargos mais importantes da república. Já critiquei vários outros ministros. Quando pertinente e oportuno, continuarei a fazer essas críticas. Essa é minha profissão como acadêmico, e valorizo a independência que a universidade pública me dá.
Nunca ofendi a honra de nenhum ministro, nem fiz críticas às pessoas privadas. São críticas institucionais ao comportamento de ministros. O temor reverencial à autoridade é o pior cacoete que o ensino jurídico e o ambiente forense podem transmitir. Tento lutar contra esse cacoete na minha profissão de professor de Direito. Agora, se Gilmar Mendes tiver alguma resposta a críticas que faço, seria ótimo lê-las ou ouvi-las. A esfera pública, e não a esfera judicial, é o espaço legítimo para essa discussão.
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Paulo Henrique Arantes é editor da revista da CAASP. Para ler a entrevista completa, clique aqui.