Livro reúne relatos inéditos de crianças brasileiras exiladas pela ditadura

Atualizado em 27 de março de 2025 às 12:52
O livro “Crianças e Exílio: Memórias de Infâncias Marcadas pela Ditadura Militar”: histórias narradas pelos seus protagonistas

O livro “Crianças e exílio – Memórias de infâncias marcadas pela ditadura militar “ apresenta histórias inéditas, sensíveis, humanas e trágicas. São 46 brasileiros e brasileiras que revelam seus segredos, suas angústias, seus problemas e como os militares os trataram naquele período.

Algumas crianças foram trocadas por diplomatas que haviam sido capturados pela resistência armada. Outras nasceram em outros países e sequer tiveram a oportunidade de serem registradas nas embaixadas brasileiras como cidadãos nacionais; além daquelas que foram levadas para fora do Brasil para não serem mortas ou desaparecidas, como seus pais.

Provoca um forte solavanco na história desse período sombrio e violento. São 46 textos de pessoas que hoje vivem no Brasil e também na França, Alemanha, Itália, Portugal e Estados Unidos.

As organizadoras da obra são as professoras Helena Dória Lucas de Oliveira e Nadejda Marques, que também contam suas histórias de infância no exílio.

O DCM falou com Natalia Keller de Almeida Trajber, a Natasha,  irmã da Tamara e do Ernesto, que, como ela, viveram o exílio da família quando crianças, no Chile, Argentina (brevemente), Cuba e Peru (brevemente), até chegar ao Brasil, em fins de 1979, onde ainda sente viver um permanente exílio de si mesma. Atualmente é coordenadora pedagógica, revisora e tradutora:

DCM – Como foi o processo para reunir tantos relatos e histórias desses personagens no exílio? 

Natalia Trajber – Quem idealizou o projeto foi a Helena Dória Lucas de Oliveira. Ela começou a germinar essa ideia ao participar das Clínicas de Testemunho – projeto vinculado ao Ministério da Justiça e aos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, instalada no governo Dilma -, que tinha como objetivo central promover uma reparação psíquica aos afetados direta ou indiretamente pela ditadura militar.

A partir de seu processo terapêutico, ela sente a necessidade de esclarecer lacunas de sua história familiar, tendo voltado ao Chile com seu companheiro em 2022, em busca de algumas respostas. No início de 2023, já de volta ao Brasil e participando de um grupo formado por brasileiros que haviam vivido no Chile como exilados (os adultos da época e seus filhos), participa da organização de uma comitiva  de 150 pessoas em homenagem solidária ao povo chileno que os havia acolhido, na ocasião dos 50 anos do golpe.

É nessa viagem que a ideia do livro começa a tomar forma, ao encontrar outras pessoas que, assim como ela, eram jovens ou crianças naquele período (1973). Uma dessas “crianças” é a Nadejda Marques, que aceitou o desafio de ajudá-la a organizar um livro escrito a partir da perspectiva das crianças e jovens que vivenciaram essa experiência de exílio. A partir daí, foram muitos contatos, horas de conversas cheias de emoção, e o grupo das “Crianças” foi se constituindo.

Fizemos diversos encontros virtuais, pois estamos espalhados por todas as regiões do Brasil e também mundo afora. E nesses eventos encontramos pessoas que não víamos há mais de 40, 45, 50 anos; tivemos momentos de muito riso, de muito choro, muito apoio afetuoso, jurídico, psicanalítico;  nos reconhecemos como pessoas que experimentaram vivências e consequências muito características, como vocês poderão compreender lendo nossos testemunhos.

Você chegou a presenciar alguma violência contra seus pais ou suas memórias ficaram resumidas às lembranças e histórias transmitidas pela tradição oral da vivência da sua família nos anos de chumbo? 

Não tenho registros conscientes, embora, naturalmente, o corpo guarde as marcas. Hoje sabemos disso, inclusive através de estudos científicos. Por outro lado, meu pai, que é polonês de nascimento e sua família havia se refugiado no Brasil depois da 2ª Guerra, foi considerado persona non grata pelo regime e banido do país. Quando eu estava com 6 anos, portanto, já com alguma consciência, voltamos do exílio, no final de 1979, na vigência da anistia política, e meu pai continuou sendo impedido de entrar, barrado já em solo brasileiro, tendo de retornar ao Peru, de onde vínhamos.

Teve início um longo processo para que seu direito de entrada fosse garantido, o que só foi possível porque era pai de uma brasileira (eu). Levou meses, e depois de muita batalha jurídica encampada por amigos advogados e manifestações na imprensa, ele pôde finalmente se juntar a nós. Ainda assim, mesmo com a naturalização sendo devolvida muitos anos depois, ele só conseguiu efetivamente reconquistar seus direitos políticos e alguns direitos civis por volta do ano 2000. Ele nunca pôde prestar concurso público e a primeira vez em que ele pôde votar para Presidente foi em 2002. Ele foi, portanto, um dos últimos a ser efetivamente anistiado, mais de 20 anos depois da lei! Quando Bolsonaro foi eleito, foi um momento muito duro para ele, trazendo de volta uma série de inseguranças, inclusive jurídicas. Há traumas dos quais, provavelmente, ele nunca se desvencilhará, assim como nós. Medos que ficam entranhados, silêncios que se perpetuam…

Você nasceu no exílio, certo? Conte um pouco sobre esse início de vida em outro país e sua chegada ao Brasil. Você se lembra disso ou era muito pequena? 

Digamos que vivi toda a minha primeira infância no exílio. A primeira parte no Chile, desde muito pequena e por alguns meses, e depois, 6 anos em Cuba. Não tenho registros conscientes da experiência no Chile, então, para além das memórias do corpo, tenho as memórias narradas pelos outros (meus pais, irmãos, amigos…). De Cuba, tenho muitas lembranças e certamente todo o tempo ali vivido, todas as experiências, ajudaram a me constituir como pessoa. Sou bilingue, porque em casa só falávamos português, mas o espanhol foi a língua vivenciada desde sempre em todos os espaços sociais.

Anatilde, Anacleto, Anatailde, Anatólio e Julião de Paula Crêspo no embarque, para Cuba em 1962, onde ficaram aos cuidados de Fidel Castro

Recordo cheiros, paisagens, amigos, experiências, alegrias, assim como segredos, medos, ausências. E quebras. Descontinuidades. A vinda para o Brasil foi uma dessas fragmentações. Posso dizer que há uma vida antes e uma vida depois desse momento. Antes, a família da gente eram os outros exilados, alguns amigos cubanos, com os quais nunca mais tive contato. Eu só conheci tios e primos consanguíneos depois do retorno. Não tenho amigos de infância, só os que chegaram depois. Lembro que passei muito tempo sofrendo com isso, morrendo de inveja dos amigos que se conheciam desde pequenos. Sempre me senti um pouco à parte, deslocada. Ainda hoje é um sentimento estranho… Ao mesmo tempo, o senso de sobrevivência faz a gente virar algumas chaves. Falo um pouco sobre isso, também, no texto.

Agora, adultos, todos autores com suas cicatrizes e memórias para digerir, certo? Este livro é um passaporte para a cura, para a pacificação com a memória dos pais ativistas? 

Muitas cicatrizes e memórias. Sim, é um passaporte para a cura, mas com muita coisa ainda por esclarecer, entender, reconstituir. Pessoalmente, eu não sinto que exista a necessidade de pacificar a memória dos meus pais, pois ela nunca foi exatamente um problema pra mim, a despeito de todas dificuldades vivenciadas. O que sinto hoje é uma necessidade ainda maior de reconstituir as memórias, de honrá-las, de registrá-las, antes que se percam, pois são muito importantes não só pra mim, mas pra nossa história, pra nossa sociedade.

Para muitas das crianças e jovens viver o exílio e mesmo sofrer junto com seus pais (ou sem eles) teve marcas muito negativas e profundas. Para mim, embora eu saiba que essas marcas existem, o que me move e me pauta é um fortíssimo senso de dever político, histórico, uma quase que obrigação de impedir que o horror e a arbitrariedade se repitam e para que a memória da importante luta que eles travaram não seja deturpada pelos discursos golpistas ainda de plantão.

Em 8 de janeiro de 2023, a Praça dos Três Poderes foi depredada por bolsonaristas. Os fantasmas do passado e seus ossos voltaram das trevas. A tortura e os massacres dos opositores, tão comuns durante a ditadura, voltaram a povoar seu imaginário?

Sem dúvida alguma. Ainda hoje povoam. Assim como vem povoando fortemente desde 2018, com a eleição de Bolsonaro e antes disso, desde o golpe sobre a presidente Dilma. É sobre isso que me referi anteriormente em relação ao meu pai, também. Há passagens da história de nossa família que ainda hoje não podem ou não devem ser contadas e ficarão para outro momento. Não entraram no livro porque a gente não se sente seguro para contar, porque sempre tem o medo de uma reviravolta política que nos leve de volta às trevas, nos interrompa, nos retire direitos.

E é por isso que a luta nunca fica pra trás. A gente vive num permanente estado de alerta. Espero que consigamos nos curar um dia, mas para isso, a sociedade precisa evoluir muito, abraçar a solidariedade, olhar sua história de frente e com verdade e consequência, responsabilizando aqueles que precisam ser responsabilizados, e enterrar definitivamente arroubos totalitários e perniciosos que visam somente a manutenção de um poder opressor, seja político, cultural ou econômico.