Sobre a cultura da noite, a tragédia de Santa Maria e a corrupção

Atualizado em 28 de janeiro de 2013 às 22:47

Nosso colunista mostra o acúmulo de erros com base em 13 anos tocando em bares

Podemos evitar que isso se repita
Santa Maria, RS, perto do amanhecer

Antes de começar, deixo meus sinceros sentimentos a amigos e familiares das vítimas do acidente ocorrido na casa noturna Kiss na madrugada de sábado para domingo. Desde que acordei, ouvi muito sobre isso, e acho que posso contribuir com algumas informações adquiridas em 13 anos de experiência tocando em bares e casas noturnas.

O ocorrido impressionou muita gente, mas não a mim. Chocou, claro, ver o sofrimento das pessoas. Nunca imaginei um acidente dessa magnitude. Mas conforme ouvia certas informações, pensava comigo: “É … não dava para esperar nada melhor mesmo”.

A primeira coisa que causou estranheza em quem não conhece este universo é que os seguranças tentaram manter os convidados dentro da casa para pagar suas comandas. Segundo Taís, uma sobrevivente entrevistada pelo SBT, os seguranças encaminharam as pessoas para a fila de pagamento mesmo após o acidente; um deles teria dito que o fogo estava sob controle – isto é, ele estava ciente do ocorrido.

Em geral, seguranças são freelancers. Ganham entre R$ 50 e 100 reais por noite. Não recebem nenhuma instrução que não seja “evite brigas e não deixe ninguém ir embora sem pagar”. Não é sempre, é bom lembrar, mas é o mais comum.

A casa também não tinha alvará, e isto também tem sido muito noticiado. Aqui, chegamos a um problema mais complexo. Primeiro, o alvará de funcionamento não tem objetivo de dar segurança a ninguém. É uma taxa como tantas outras, um caça níquel das prefeituras. Eu, que jamais fui dono de bar, não conheço valores, mas já ouvi dezenas de pessoas afirmando que é abusiva.

Quando os dificultadores entram em cena, abrem espaço para corrupção. Conseguir licença para abrir uma casa noturna é algo tão intencionalmente complicado e burocrático que acaba corrompendo grande parte dos empresários. Com isso suas casas ficam sem alvarás. Sem alvará, a policia recebe suborno. Com suborno, não há controle – quem pode dizer que havia saídas de emergência suficientes se a checagem está sendo feita através de dinheiro?

Tenho visto gente falando da espuma acústica também. As de alto nível são auto-extinguíveis. Eu já vi demonstrações – a espuma pega fogo e encolhe, não espalha. A cola, hoje, também não é mais tóxica necessariamente. A Cascola fabrica um produto sem tuluol, componente mais tóxico da composição.

O problema é que muitas vezes se usa material de baixa qualidade. Aí o ciclo é o mesmo. Mercado pobre, prefeitura abusiva, policia corrupta, e o empresário opta por economizar em segurança. Às vezes me parece o Titanic, em escala menor. Lembra a cena do dono dizendo que não precisava de mais botes salva-vidas porque o barco era inafundável?

Soluções para o mercado da noite existem aos montes. A mais urgente, na minha visão, é proibir o uso das comandas. Na maioria dos países desenvolvidos, paga-se no momento do consumo. Aqui, a alegação é que é para não aumentar as filas no bar. Não é verdade. Comandas são utilizadas porque com elas consome-se mais. Se você paga por cada Coca-Cola, vê o dinheiro saindo; se o consumo é anotado num sistema, muitas vezes nem sabe o preço que está pagando. Só nota no fim da noite. Agora, veja que isto, sozinho, poderia ter evitado grande parte daquelas mortes.

Mas esta seria uma medida paliativa. É preciso mudar essa cultura, e o começo disso está no Estado – quando as prefeituras derem o bom exemplo, deixando de abusar dos empresários, quem sabe os empresários sejam capazes de instruir melhor seus funcionários. Taxas e multas têm que ser equivalentes ao tamanho do estabelecimento. Dessa forma, você cobra algo possível de ser pago, e não um valor que só vai fomentar a corrupção.

Com tudo isso, não estou de forma nenhuma eximindo os culpados. Os seguranças que foram desumanos e indecentes são culpados. Assim como os donos da casa. Mas a policia também é. E a prefeitura também.