Uma escritora conta o que é ser mulher na Índia

Atualizado em 17 de março de 2013 às 21:08

Escapar de coisas como casamento arranjado não é fácil.

A atriz indiana Aishwarya Rai
A atriz indiana Aishwarya Rai:  inúmeros obstáculos para as mulheres na Índia

Sushi Das é uma jornalista que nasceu na Índia, cresceu na Inglaterra e finalmente se radicou na Austrália. Lá, ela é editora de opinião do jornal The Age. O texto abaixo foi extraído de seu recém-lançado livro de memórias “Casamento Arranjado”, no qual descreve, com humor ferino, a vida dura de uma mulher indiana. O estupro de uma estudante indiana de medicina num ônibus em Nova Delhi trouxe a questão da dramática situação da mulher na Índia para os holofotes em todo o mundo. A tradução é de Camila Nogueira.

Garotas. Elas são uma dependência econômica para os pais indianos. A criação delas é cara. Elas podem arruinar a reputação da família com o poder da indiscrição. Elas precisam de um dote quando você as casa, e o que você recebe de volta? Nada além de preocupação e miséria.

Garotos, por outro lado, são produtivos economicamente. Quando crescerem, ganharão salários, trarão uma esposa para casa, recebendo o dote desta, e agirão de modo a preservar e trazer prosperidade à situação dos pais, quando estes envelhecem. Quem não desejaria filhos?

Por sorte, tivemos um filho em nossa família. Mamãe não era mais apenas a mãe de filhas; era a mãe de um filho. Seria melhor ter sido mãe de vários filhos, mas mamãe estava grata por ter apenas um. Grata por ter sido recompensada por uma autoridade elevada, ela era capaz de estender sua profunda simpatia para qualquer mulher negligenciada por Deus.

Uma amiga indiana de mamãe teve sete filhas. Sim, sete. Pessoas sempre foram gentis para ela. Uma tragédia épica aconteceu-lhe. Uma infelicidade em todos os dias da semana. Ninguém poderia acusá-la de não ter tentado ter um filho. Veja o que ocorreu, no entanto. Suas lindas filhas alegravam nossa casa quando nos visitavam. Sete sílfides com olhos negros e inteligentes, pescoços de cisne e sorrisos confidentes. As sete, juntas, poderiam transformar um quarto em uma pintura à óleo.

Mas é difícil para os indianos ver sete garotas e não pensar na sombra de sete dotes, sete oportunidades para a honra da família ser manchada, sete fardos.

Quando ela engravidou pela oitava vez, todos rezaram por ela. Um filho, por favor, conceda-lhe um filho. Quando ela deu luz à gêmeos, ambos meninos, era como se o paraíso houvesse se aberto e mandado adiante rios de chuva após setecentos anos de aridez. Não um, mas dois meninos! Filhos enfim, finalmente filhos, graças ao bom Deus, eram finalmente filhos.

A vida para os garotos indianos é diferente. Desde o dia de seu nascimento – o qual, por falar nisso, é celebrado com muito mais gosto do que o das meninas – as coisas são mais fáceis. Os pais são muito mais amáveis perante eles – afinal das contas, são eles quem cuidarão deles quando envelhecerem (ou, melhor dizer, as mulheres com quem eles virão a se casar cuidarão dos sogros, quando velhos).

Mais importante, a sexualidade dos garotos não é motivo de temor (a não ser que eles sejam gays, o que seria sem dúvida considerado uma calamidade). Eles não podem engravidar fora do casamento e trazer vergonha para a família, como uma filha pode fazer. Sim, eles podem envergonhar os pais com atos criminosos, motivados por aposta ou bebida, mas não com imoralidade sexual, considerada pelos indianos o verdadeiro motivo de vergonha e uma desgraça que apenas as mulheres podem jogar sobre a família. Considerando tudo, garotos são melhores.

Mas, às vezes, até mesmo meu irmão Raza não servia de consolo para as profundas decepções de minha mãe com as minhas falhas. “Você é muito alta”, ela reclamava constantemente, como eu crescia além da altura estipulada para uma garota indiana obediente. “Precisamos encontrar um homem mais alto do que você para que você se case.”

A preocupação com minha altura, no entanto, era diminuída diante de seu temor com o tamanho do meu busto, uma vez que o tamanho ideal seria um par de mangas roliças. Eu não atingi o objetivo. Quando um casamento está sendo arranjado por uma mãe indiana, uma filha defeituosa pode ser um grande problema – ou, nesse caso, dois pequenos problemas. Uma filha sem peitos significa duas aspirinas. Bens arruinados.

Tive que visitar o médico para descobrir o que havia de errado comigo. Quando contei ao Dr. Hall que estava perfeitamente confortável com meu peso e que era minha mãe quem se importava com minhas imperfeições, ele se ofereceu para conversar com ela.

Naquela tarde, ele ligou para ela. Eu ouvi do topo da escada. “Sim, doutor, sim, doutor. Sim, obrigada, doutor,” eu a ouvi falando antes de desligar e subir lentamente as escadas.

“Era o Dr. Hall no telefone”, ela disse em seu inglês vacilante, sentando na minha cama com um suspiro desolado.

“Ele estava bêbado. Ele disse que você era uma garota saudável e atraente. Ele disse que não há nada de errado com você. Definitivamente bêbado.”

Alguns meses depois, ela estava sentada na borda da minha cama, chorando. “A culpa é minha”, ela soluçou, acenando com a cabeça na direção do meu peito. “Na Índia, quando descobri que estava grávida de você, fui a procura de um médico especial. Pedi que me desse um garoto. Então ele me deu algumas ervas.”

“O que?! Você foi ver um médico de bruxaria?”

“Eu tomei as ervas”, ela continuou em punjabi. “Mas quando você nasceu era uma garota e eu simplesmente pensei que as ervas não funcionaram. Mas agora que você está mais velha e não se desenvolveu percebo que as ervas funcionaram pela metade!”

Ela voltou a soluçar violentamente. Eu não sabia como consolá-la. Não estava com raiva de sua crença ingênua e supersticiosa de que a criança que carregava poderia tornar-se um garoto com uma poção mágica. Não estava com raiva do instinto maternal que a levou a culpar-se por algo que ela deveria saber que estava além de seu controle. Mas com raiva de mim mesma, por ter tido a infelicidade de ter nascido em uma família indiana que cria as filhas na Grã-Bretanha. Nesses momentos, eu pude ver diante de mim o abismo de comunicação entre meus pais e eu. Suas expectativas orientais. Meus desejos ocidentais. Qualquer pensamento além desses era distorcido pela imaturidade, e simplesmente caía de um penhasco para um mar de desprezo por mim própria.