As sentenças de morte executadas sem julgamento

Atualizado em 11 de fevereiro de 2013 às 9:30

A terrível lógica dos assassinatos por “razões de Estado”.

Obama
Obama

Após converter-se ao cristianismo, Paulo de Tarso foi aprisionado em Jerusalém.
Prestes a ser açoitado, interpelou o centurião, perguntando-lhe se, na condição de cidadão
romano, era lícito que sofresse aquela punição sem antes ter sido julgado e, eventualmente,
condenado. Seu atrevimento garantiu-lhe a libertação imediata, pois sua cidadania o salvava
de um tratamento tão degradante. Nos dias de hoje, já não se pode dizer o mesmo dos
cidadãos norte-americanos no exterior.

Foi divulgado recentemente um memorando do Departamento de Justiça dos
EUA, cujo conteúdo pode parecer um pequeno passo para um burocrata desavisado, mas
representa um gigantesco tropeço para a humanidade. E não estou exagerando.

Consta do documento que a garantia de um processo legal prévio a uma condenação,
a proteção contra buscas e constrangimentos desarrazoados ou a própria cidadania, de
forma genérica, não constituiriam impedimento contra o “assassinato por razão de Estado”.
Trocando em miúdos, o governo americano poderá executar o seus nacionais que estejam no
exterior, sem julgamento prévio, sem defesa ampla e sem direito ao contraditório: basta que
o governo entenda que o indivíduo representa uma ameaça à segurança do país, e que tenha
envolvimento com grupos terroristas.

O impacto dessa sombria novidade, na esteira dos excessos cometidos em
Guantânamo, do Patriot Act, e do programa internacional de prisões ilegais da CIA, é mais um
duro golpe na primeira Constituição que a humanidade viu surgir. Esse tipo de ato é o avesso
do que se espera da “maior democracia do planeta” em um mundo já imerso numa profunda
crise institucional, em que os países europeus demonstram uma teimosa surdez política em
favor de interesses econômicos e os BRICs não oferecem valores democráticos e libertários
que tenham relevância global.

Nesse cenário, estamos diante de uma encruzilhada que impõe a reflexão em torno do
que se entende, pelas bandas do Ocidente, por Constituição. Fato é que esta palavra solene
ainda surge em nossa mente sempre associada à ideia de justiça e emancipação humana.
Ninguém liga a Constituição ao arbítrio governamental. E há uma sólida razão para isso.

Ao longo de sua história, a humanidade aventurou-se em inúmeras formas de
organização política. Porém, só a partir de 1787, com a promulgação da Constituição norte-
americana, surge um modelo baseado num pacto escrito que propõe a limitação do poder
do Estado diante de direitos considerados fundamentais para o ser humano, como a vida, a
liberdade, a propriedade, entre outros. Desde então, consolidou-se a noção de que no DNA
de uma Constituição está escrito que o homem é a medida de todos os governos, e de que o
poder estatal só avança até o ponto em que não viole, arbitrariamente, direitos e garantias
individuais.

Consequência de um ataque de drones no Paquistão
Consequência de um ataque de drones no Paquistão

É certo que esta conquista não foi alcançada do dia para a noite. Na verdade,
toda a conturbada história dos Séculos XIX e XX repercutiu no significado e no alcance da
Constituição. Ao longo de décadas a garantia de suas promessas de democracia e liberdade,
movidas pela superação de adversidades capazes de importar graves retrocessos, parecia
indicar uma constante consolidação e ampliação. Nos principais eventos do Séc. XX, sobretudo
com o fim da Segunda Guerra, gradativamente ganhou força a ideia de uma “lei maior” como
fundamento de uma ordem libertária. E esta tendência parecia fluir tranquila pelo rio da
História… até os atentados de 11 de Setembro.

Os ataques terroristas da primeira década do Século XXI jogaram o mundo em um
turbilhão, mergulhando os valores ocidentais em uma crise sem precedentes, com impacto
direto na ideia de Constituição. No caso dos EUA, a reação não poderia ter sido mais trágica.
As profundas conseqüências para o conteúdo dos direitos fundamentais deixaram à mostra a
escassa habilidade do governo para combater um novo e fragmentado inimigo: o terrorismo
islâmico.

Mais do que isso, ficou claro também como pode ser desastrosa a condução de fatos
dessa magnitude por uma classe política tacanha e míope. Esta constatação ganha ainda mais
força no caso dos EUA, onde a ameaça à segurança interna nunca serviu de desculpa para
o abandono de valores jurídicos essenciais. Ao menos, não para uma sociedade que teve
estadistas da estirpe de John Adams, Thomas Jefferson e Benjamin Franklin, cujo inimigo não
era a Al Qaeda, mas o poderoso Império Britânico. A diferença é que, nem por isso, esses
líderes deixaram de legar momentos luminosos para a humanidade como a Declaração de
Independência e a própria Constituição.

Ao expor a vida, o mais básico de todos os bens, ao arbítrio de agentes públicos
anônimos, justificando um Estado com poderes ilimitados, o governo Obama escreve mais um
triste capítulo na crise política que assola o Ocidente.

Esse documento recém-publicado chega como um drone desgovernado,
bombardeando as garantias individuais mais elementares. Sua presença parece avisar ao
mundo que nos encontramos na “hora mais escura” da modernidade.

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